Centenário de Joaquim Nabuco remete também a reflexões sobre o atual momento brasileiro
Urariano Mota*
Deu no Direto da Redação
Recife (PE) - O centenário da morte de Joaquim Nabuco tem originado muitos artigos e reportagens em nossa imprensa. Em quase todas as matérias, o destaque se faz ao papel de homem liberal, personagem olímpico, ilustrado, de Quincas, o belo. Nas breves menções às idéias mais radicais de Nabuco, tem-se pulado rápido para o conceito de “homem complexo”, que pode ser manipulado à direita, à esquerda ou não, como um texto bíblico.
Entre os textos comemorativos, a revista Veja, num esforço máximo de não difamar uma vez mais a história, publicou na edição número 2147 um perfil do abolicionista. Mas à sua maneira, de revista de sala de espera de consultório médico oncologista:
“As mulheres não resistiam a Nabuco. Aliás, os homens também não...(já o abolicionismo) foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado... (Nabuco) era assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos.”
Notem que as coisas mais graves se dizem assim, entre amenidades e atualizações que vulgarizam ou difamam. A paixão de Nabuco pela causa abolicionista, como uma extensão de galã de filme capa-e-espada (Stewart Granger em Scaramouche?), não se devia fazer, não é justo que se faça pelo obscurecimento de homens tão fundamentais quanto Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens, enfim, talvez menos belos e apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade das gentes. Mais, pior: dar a entender que a abolição formal da escravatura se realizou pelas mãos delicadas e puras do homem que despertava o furor feminino. Menos telenovela à Janete Clair, por favor.
E no entanto, notem, o perfil panegírico, ou, mais sério, uma atualização da grandeza de Nabuco não exigiria tais anestesias desviantes. Ele, as suas idéias, o seu pensamento radical, a sua visão de futuro, a percepção aguda do Brasil até hoje não superada, está no que escreveu, na belíssima e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Quem anda pelo interior do Brasil, aquele que a Folha chama de Brasil profundo, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe o quanto Nabuco acertou.
Ou então:
"Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão"
Quem vê a quantidade de negros, menos negros e mestiços nos presídios, sabe, a obra da escravaria não acabou.
Ou mesmo:
“A emancipação não significa tão-somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.
Que definição bela e definitiva da dialética entre escravos e senhores! Quanta precisão do que diminui, do que avilta a pessoa no jogo e conflito entre o machucado e o machucador.
Em Joaquim Nabuco se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não está bem no perfil físico do Belo Quincas de um metro e oitenta e seis. Está em linhas lapidares em que o pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. Isso porque Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. A divisão estúpida e burra que dá aos ficcionistas o grau único de escritores, aqui, em Nabuco, comete o seu maior crime. Pois ele é aquele que gravou esta profecia, que todo homem é obrigado a carregar:
“O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber”.
Desse desertor de sua casta, de sua classe, de sua raça, como o percebia Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico de Brasil que continua urgente, cem anos depois. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravaria, nos campos nas cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu pedido ao médico, no último leito:
"Doutor, pareço estar perdendo a consciência... Tudo, menos isso!"
Sorte nossa que ele não a perdeu. A sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de 8 anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo, Quincas ficou eterno.
(*) Escritor e jornalista
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
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