Reportagem mostra a situação dramática que vivem os habitantes da favela de Cité Soleil, em Porto Principe
Antonio Jiménez Barca
Deu no jornal espanhol El País (tradução de Vanessa Alves)
Depois do terremoto, os habitantes de Cité Soleil carregaram seus mortos até uma avenida de outra zona menos miserável do já miserável Porto Príncipe porque sabiam que ninguém entraria em seu bairro para levá-los.
Os efeitos esperados de um terremoto de magnitude 7 na escala Richter em uma cidade de favelas são: muitos casebres afundaram, mas muitos outros se mantiveram surpreendentemente de pé, de forma que a rua principal (modo dizer) de Cité Soleil mantém algo do seu perfil de sempre: lojas diminutas e fechadas, oficinas sombrias de tudo e nada, moradias de três metros quadrados, centenas de pessoas estendidas sem fazer nada, um riacho imundo que corre às margens, e crianças desnudas jogando com meia garrafa de plástico à qual empurram como se fosse um carro de corridas...
Mas as favelas se racharam tanto que os que vivem aí preferem dormir ao relento, ao lado de um monte monstruoso de lixo e do rio citado, dentro do qual até terça-feira passada foi a sua casa. Por outra parte, em muitas das construções, inteiras por fora, afundou o telhado de papelão ou de uralita expulsando seus antigos habitantes do lugar. Além disso, a brutal sacudida econômica e social que sofreu a cidade inteira se alimenta com os últimos da fila.
Bazile Pludic é um destes últimos da fila: trabalhava, quando podia, transportando fardos em uma fábrica de madeira que fechou definitivamente depois da catástrofe da terça-feira. Pludic confessou ontem, às duas da tarde, que não sabia o que comeriam ele e sua mulher durante todo o dia e que tinha fome.
"Tenho fome!", repetiu, de repente, em voz alta, como para que acreditassem de verdade.
Na janelinha de uma favela apareceu o rosto de uma mulher mais velha, desdentada, suja, que acrescentou: "Todo o mundo aqui tem fome, tio".
Virá algum tipo de ajuda humanitária hoje?
Alguém responde que na praça principal (modo de dizer) deste povoado, todas as manhãs chega um caminhão com comida. Será francês? Russo? Será espanhol? Das Nações Unidas? Será dos marines norte-americanos?
A praça está longe. Se chega a ela depois de caminhar entre miséria, casas torcidas, lojas de nomes raros como "É minha opinião", e pessoas que apesar de tudo sorriem pausadamente para o estrangeiro antes de pedir-lhe água, dinheiro ou algo para comer. A praça é uma velha pista de basquete tomada pelos mais miseráveis da já miserável Cité Soleil: pessoas deste bairro que ficaram sem casa, que não contam com família em outra parte e que vivem, literalmente, debaixo de um lençol furado em um pau para não pegar sol.
De repente se vislumbra o famoso caminhão da manhã, o da comida. É velho e pequeno. Por dedução, não é dos marines. Não parece francês, nem espanhol, nem sequer russo. É uma caminhonete verde com 20 anos de uso, um homem pequeno e suado ao volante e três jovens na traseira. Pintadas na porta há umas letras: "Missão de caridade A Koulade". O do volante é o padre Cyril e os detrás, três rapazes do bairro que ajudam a descarregar.
"São os de sempre. Eles sempre nos ajudam, há muito tempo, desde antes do terremoto. Dos estrangeiros não tem vindo ninguém ainda", diz uma mulher.
O padre Cyril explica as regras: só um copo de trigo por cabeça. -Não há suficiente. Já sei. O senhor que é jornalista e estrangeiro, não pode fazer algo? Já lhe digo que isto não é suficiente.
Um garoto sobe com um saco e começa a repartir as diminutas quantidades de comida às dezenas de pessoas que fazem fila com seu copo na mão. Um helicóptero impõe silêncio então ao passar rumorejando muito perto. Vem do aeroporto, onde se supõe que a estas alturas já estão desembarcando os esperados marines, que toda a cidade aguarda como reparadores de tudo: diante de um edifício perto afundado pelo terremoto alguém colocou um cartaz em inglês: "Bem-vindos, soldados americanos. Necessitamos de ajuda: neste edifício há cadáveres dentro".
Mas enquanto chegam ou não, em Cité Soleil, o padre Cyril termina na praça e monta na caminhonete para acudir outra esquina com outro saco de trigo insuficiente para famintos com copos vazios.
Na direção contrária, duas pessoas levam em uma carretilha uma garota com a perna quebrada que se protege do sol com uma sombrinha colorida. Logo depois aparecem quatro pessoas levando dentro de um edredom imundo uma menina. Vêm do hospital, onde ninguém os atendeu por falta de médicos.
Em Cité Soleil não chega ninguém: nem os colhedores de cadáveres, nem as ambulâncias, nem os caminhões de comida estrangeira.
Em uma rua, há um esqueleto de escola de duas plantas. As paredes se afundaram. Mas as carteiras e a lousa se mantêm de pé, tal e como se encontravam o dia do terremoto. Na lousa há uma data e uma frase milagrosamente intactas: "Terça-feira, 12 de janeiro. Os deuses castigam os mentirosos".
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
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