Correspondente faz um paralelo entre a Irlanda do Norte, Israel e Palestina
Robert Fisk
Deu no The Independent
Estávamos andando pelo Cemitério Milltown, semana passada, eu e David McKittrick – Nosso Homem em Belfast e um dos meus mais velhos amigos – e o vento descia, mordendo, de Cave Hill.
“Camuflada em gelo e neve” – assim o Belfast Telegraph descrevia a Irlanda do Norte, quando embarquei no trem de volta a Dublin, dia seguinte; mas acho que as amarguras do Ardoyne[1], do parque Falls, da [avenida] Shankill[2], dos velhos Mercados são culpadas pelo exagero. Por mais que se diga que seria uma linha “para a paz”, aquela implacável, gelada muralha de ferro, pedra e arame farpado logo a leste de Andersonstown fez-me lembrar outra e mais permanente “cerca de segurança” a mais de 3 mil quilômetros dali.
No Cemitério Milltown, no “reduto” republicano – sim, Bobby Sands está enterrado lá, também homenageado, é claro, na rua ao lado da embaixada britânica em Teerã –, está a sepultura na qual estão enterrados juntos Máire e James [Jimmy] Drumm do Sinn Fein. A foto a mostra mais jovem do que a conheci, toda sorrisos e cabelos cacheados, sem vestígio de fúria e cinismo (ela me recebeu risonha, há mais de 34 anos, quando apareci para me despedir, com uma garrafa de uísque sobre a mesa e os comandantes da Brigada de Andersonstown, do IRA, pelos sofás em volta dela, reunidos para dizer adeus ao jovem “fella” que partia para Beirute).
Em seu túmulo lê-se “Assassinada por elementos pró-britânicos” – que é o mais perto que alguém do movimento Irlandês Católico Republicano jamais chegará de escrever “protestantes” –, e lembrei que atiraram nela quando estava doente, numa cama do Hospital Mater em 1976; que ela caiu da cama enrolada nos lençóis ensangüentados; que tentou arrastar-se pelo chão e que, então, atiraram nela outra vez.
Ninguém poderia saber que Belfast seria hoje cidade de maioria católica. Nem os colonizadores protestantes dos séculos 16 e 17 – os fazendeiros jacobinos e os veteranos de Cromwell – jamais souberam que suas terras seriam quase totalmente católicas, 400 anos depois. A história dos “assentamentos” protestantes na Irlanda é como uma narrativa ancestral, espectral, do que se diz hoje sobre os modernos “assentamentos” na Cisjordânia, onde os israelenses insistem em combater a última guerra colonial, com assessoria direta dessa que um dia foi grande nação anticolonial, conhecida como EUA.
Há legiões de diferenças, é claro. O protestantismo, em suas inúmeras modalidades irlandesas, visava a converter – ou promover a “limpeza étnica” dos católicos gaélicos. O judaísmo não faz proselitismo – antes, exatamente o contrário –, e o discurso pelo qual Israel insiste em reclamar (ilegalmente) direitos sobre terra dos árabes na Cisjordânia baseia-se em textos considerados sagrados, não no poder de algum rei.
Robert Kee, dos mais refinados especialistas na história da Irlanda dos séculos 16 e 17, diz concisamente: “Os quatro condados de Donegal, Tyrone, Derry e Armagh (...) junto com os dois condados de Cavan e Fermanagh tornaram-se objeto do mais sistemático empenho jamais visto para instalar e plantar, na Irlanda, estrangeiros vindos da Inglaterra e da Escócia. Foi a chamada “Plantation of Ulster”, planejada no gabinete de um governo, entre 1608 e 1610."
Antes já houvera tentativas de colonizar a Irlanda bárbara, quando soberanos católicos implantaram famílias em Leix e Offaly (cujos proprietários de terra descobrem que vivem hoje em condados do rei e da rainha, exatamente como se espera que os palestinos creiam que, desde 1967, vivem em Judeia e Samaria). “Mas todas essas implantações anteriores fracassaram”, escreve Kee. “Fracassaram por falta de braços ou de capital de apoio, ou ainda por terem sido fisicamente varridas de lá pela rebelião dos que haviam sido expulsos e roubados para que houvesse lugar para os colonos."
Esse continua a ser o medo de Israel: que os palestinos expulsos e roubados em 1948 voltem para retomar suas terras do que hoje é o Estado de Israel ou, pelo menos, para as terras que lhes foram roubadas na Cisjordânia, depois de 1967. Os massacres de protestantes por católicos em 1641, período de guerra civil vividamente capturado nas 20 mil páginas de depoimentos hoje arquivados pela minha própria alma mater do Trinity College, em Dublin, é pálido precursor do massacre de judeus em Hebron durante a rebelião árabe de 1929; embora 1.300 protestantes tenham sido enforcados e passados pelo fio da espada em 1641; e 64 judeus, em Hebron. William Baxter, cavalheiro que trabalhava para a empresa Co. Fermanagh “declarou sob juramento que Ross McArt McGuire roubou terras de sua propriedade em Rathmoran [direitos de propriedade comprovados porque] as terras pertenciam a seu pai antes da dita implantação de colonos” – como a professora de história moderna Jane Ohlmeyer relembra em artigo recente.
Mas os colonizadores elizabetanos vieram como soldados-colonos. Mais tarde vieram os protestantes escoceses, como os israelenses para a Cisjordânia, como colonos treinados para ser soldados. “A ideia de povoar terras não povoadas incendiou a imaginação de homens dos dois países” – cito o trabalho de Perceval-Maxwell sobre a migração escocesa, mas “fazer florescer o deserto” e “terra sem povo para povo sem terra” são frases que ecoam longe, no futuro.
Cromwell injetaria uma nova forma de violência na Irlanda, cujas vítimas, afinal, podem ser encontradas hoje no Cemitério Milltown e, adiante, pela estrada Falls, no cemitério predominantemente protestante da cidade de Belfast. Os massacres em Drogheda e Wexford agiram para as massas como catalisadores do medo, assim como as matanças em Deir Yassin e muitas outras vilas árabes em 1948 levaram os moradores de centenas de outras vilas e cidades árabes a capitular e fugir das terras que viriam a constituir Israel. A maior parte das melhores terras da Irlanda, pelo menos ¾ delas, foram confiscadas, roubadas de seus proprietários católicos, e os habitantes foram expulsos para as terras geladas e selvagens de Connaught. À altura de 1688, os católicos possuíam apenas 22% das terras da Irlanda gaélica original, precisamente a mesma porcentagem da terra palestina do Mandato – 22% –, em nome da qual Yasser Arafat teve de negociar o ‘acordo’ de Oslo, absolutamente sem esperanças ou chances. Hoje, a terra que pertence a árabes na ‘Palestina’ é ainda menor que aquela – e caminha inexoravelmente para os meros 14% que ainda pertencia a católicos em 1703.
Outra vez, não são narrativas comparáveis; mas todos os espectros ainda não nascidos estão aí. Os governantes ingleses no século 17 suspeitavam – com muita razão – que a Espanha trabalhava para oferecer apoio espiritual e material aos insurgentes irlandeses; exatamente como Israel, hoje, crê (também com muita razão) que o Irã está oferecendo apoio espiritual e material ao Hamás, e, fora da ‘Palestina’, também ao Hizbollah. Onde havia o Papa de Roma, leia-se hoje “Papa Khamenei de Teerã”. Em muitas ocasiões, atos de “terrorismo” contra os protestantes emergiram de católicos sem-terra que trabalhavam para os mesmos que lhes haviam roubado a terra. E então, mais tarde, os “assentamentos” protestantes foram cercados por muros e muralhas defensivas enorm es, nas quais havia, de distância em distância, torres de vigia e aberturas para atiradores. A cidade de Derry tem muralha mais alta que o Bogside católico[3], tão violenta e feroz quanto a muralha israelense que hoje invade ainda mais terras árabes.
E, claro, os católicos irlandeses fugiram de lá – exatamente como o ministro dos Negócios Externos de Israel gostaria de “tranferir” palestinos para o oriente. E para onde foram os católicos irlandeses? Cerca de 100 mil fugiram para a Europa, a maioria para os territórios espanhóis dos Habsburgo, em muitos casos para as terras de Espanha das quais os mouriscos – muçulmanos da Espanha e o remanescente dos judeus espanhóis – acabavam de ser varridos (“limpeza étnica”) pelos senhores de terras cristãos católicos. O massacre final dos muçulmanos espanhóis (que não se converteram) ocorreu em 1609, quando Felipe de Espanha obrigou 300 mil almas a abandonar a península Ibérica e partir para o norte (otomano) da África. Entre eles, partiram espanhóis “limpadores étnicos” que haviam assassinado por etnocídio os mouriscos – dentre outros, Garcia Sarmiento de Sotomayor e o Conde Caracena – que passaram a exigir recursos para os irlandeses que chegavam à Galícia.
Publicações dos católicos irlandeses da época – segundo pesquisa feita por Igor Pérez Tostado – comparavam os católicos irlandeses e os muçulmanos espanhóis: “ambos eram apresentados não só como traidores e desleais, mas como ameaça existencial à vida da comunidade política.” E todos, de fato, foram jogados ao mar.
Mas, afinal, os “assentamentos” ingleses e escoceses fracassaram na Irlanda. A eterna esperança dos protestantes de que o apoio vindo de Londres seria eterno, acabou por se revelar esperança delirante, falsa. E então?! O que dizer da certeza, de Israel, de que receberá eterno apoio de Washington?
Ainda não creio em alguma “solução de um Estado” – que a minoria protestante terá de aceitar algum dia na Irlanda, se é que já não aceitou, subconscientemente, talvez –, mas o fim de todas as colonizações é o cemitério. Muralhas não funcionam. Nem religiões ‘superiores’. Nem se pode fazer limpeza étnica ‘total’. A história, que se deve estudar sempre, como as esperanças delirantes, falsas, é carrasco sem piedade.
Data de publicação: 02/01/2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário