A poucos minutos dos escombros de Porto Príncipe, vende-se champanhe a 150 dólares
Simone Bruno, de Porto Príncipe
Fonte: Opera Mundi
Cerca de 500 metros acima do devastado centro de Porto Príncipe, existe outro mundo. Um mundo onde há empregadas domésticas, seguranças armados, carros esportivos de forte cilindrada, altos muros de proteção com cercas elétricas e imensos cartazes com uma caveira desenhada e uma mensagem escrita somente no idioma crioulo: “Danje pa manyen" (Perigo, não toque). Recado destinado à maioria pobre do país, que não fala francês.
Neste mundo do andar de cima, não se veem cenas como a da foto abaixo. Lá, as casas com seus jardins e piscinas estão intactas, muitas sem nenhum sinal de dano. Como se até o terremoto tivesse respeitado a cerca elétrica e poupado as residências da montanha verde e fresca da parte alta de Petionville.
Menino ferido no terremoto é atendido em hospital de campanha da capital, parte baixa
Na zona alta de Porto Príncipe, vive a elite rica do país. Ali estão as casas de senadores, de ex-presidentes, de fazendeiros, de embaixadores, de europeus e norte-americanos. Também estão os escritórios comerciais de famílias que controlam o porto e o edifício onde mora o dono da principal lotérica do Haiti, intacto na parte mais alta da montanha. Tampouco a igreja desta colina, Saint Pierre, com sua torre estreita, sofreu algum dano.
Claro que influencia a qualidade das construções, mas outras zonas ricas da capital, como a Upper Turgeau, foram afetadas e mesmo a parte baixa de Petionville, onde está o hotel Montana, desmoronou completamente. Na colina dos ricos, o terremoto chegou com menos força, o que deve aprofundar ainda mais a desigualdade de renda no país.
No Haiti, o Coeficiente de Gini, que mede a distribuição de riqueza, antes do terremoto era o oitavo pior do mundo, sendo que 80% da população vivia abaixo da linha da pobreza e 54% em condições de extrema pobreza, com uma taxa de desemprego que afetava dois terços da população.
“Foi terrível”, conta o engenheiro civil Raoul, enquanto o filho de 10 anos se esconde atrás de suas pernas, brincando. “Nós nos assustamos muito, mas por sorte nossa casa ficou intacta”. Um vigia armado faz a sua segurança desde a cerca do jardim. Outro o acompanha enquanto desce de sua BMW. Um zelador uniformizado abre a porta da casa, como fazia há 20 dias.
Nada mudou. Não se escutam ruídos. Uma brisa fresca alivia os efeitos do sol que esturrica a parte baixa da cidade e afasta os maus odores que vêm de lá. Na quadra onde vive o engenheiro, há muitos seguranças armados e poucos habitantes. “Os brancos se foram quase todos”, conta um vigilante. “Dos ricos, ficaram somente uns de origem haitiana”.
Muitos dos vizinhos de Raoul deixaram a cidade um dia depois do terremoto em aviões particulares ou por terra até Santo Domingo ou para seus países de origem. Nesta zona da cidade vivem também os poucos haitianos com mais recursos e os estrangeiros que investem no país. “Poderia ter ido embora também, mas de repente este desastre doloroso era a única maneira de dar um futuro ao Haiti. Agora é uma tábula rasa com a qual podemos começar tudo de novo”, diz Raoul.
Na Upper Petionville, os bares coloniais não fecharam em nenhum momento, assim como os restaurantes de luxo. As lojas de moda, as de carros importados e as de relógio de grife voltaram à normalidade pouco depois do terremoto.
Uma senhora de aspecto europeu admira as vitrines. Calças brancas, óculos Calvin Klein, ela olha com curiosidade em frente a uma loja de roupa norte-americana, mas não entra. O filho a chama e os dois riem das luzes que saem dos sapatos da criança.
"Lamento por estes pobrezinhos"
Nos supermercados mais luxuosos de Petionville se vendem vinhos e queijos franceses, embutidos espanhóis ou italianos e produtos norte-americanos. Perto da porta de entrada de um deles, ainda fechado, o dono Erwin Berthold comenta: “Todo o país está sofrendo, mas nós aqui estamos bem, estamos limpado tudo e estamos prontos para voltar a abrir. Precisamos somente de um pouco de segurança. Então, que nos enviem os soldados da Marinha”.
Edilio Cipriani tem 70 anos, sendo os últimos 12 vividos no Haiti. Era dono de duas sorveterias, agora lhe resta somente a chamada Fior di Latte, que fica atrás da praça Saint Pierre. “Tinha outra nova na parte baixa de Petionville, mas restaram somente escombros. Esta, em compensação, está perfeita. Tive muita sorte. Lamento muito por todos estes pobrezinhos que morreram e ficaram sem nada. Todos os meus empregados perderam suas casas, mas pelo menos ninguém morreu”.
Na praça do bairro também se encontram algumas barracas entre as quadras de tênis e os parques. São de habitantes da parte baixa da colina que perderam suas casas e decidiram esperar por ajuda mudando-se para onde estão os vizinhos mais afortunados. À noite acendem fogo para se aquecer e estão construindo um pequeno acampamento, somente aparentemente parecido com os da parte baixa da cidade. A praça, ainda que invadida, continua sendo um mercado onde muitos compram flores bonitas e coloridas.
Joseph observa o movimento quase chorando. É um jovem economista do principal grupo bancário do país. “É o fim”, comenta. “Para o Haiti não há futuro, pelo menos nos próximos anos. Assim que possível vou me encontrar com meus primos em Atlanta. Tenho visto e eles estão procurando trabalho para mim lá”.
Outras localidades
A 300 metros dali está o Valle Boudon, um bairro esquecido por todos. Um cartaz em inglês na entrada faz a apresentação: “Área esquecida. Nós precisamos de ajuda”. Este é um bairro “não convencional”, segundo definem os moradores. Uma forma elegante para dizer que era um bairro invadido. Agora só se pode entrar a pé, porque os escombros fecharam a única rua. O cheiro de morte está por toda a parte. Das ruínas se vê uma mão com unhas pintadas de vermelho. “Há outras quinze pessoas somente nestas três casas”, conta um morador. “Ninguém nos ajudou”.
Fora de Porto Príncipe, seguindo a costa, há vários povoados que perderam as poucas construções que tinham. O mesmo cenário é encontrado até chegar a Kaliko Beach, um luxuoso resort onde os funcionários da ONU e europeus iam para relaxar, almoçar em frente ao mar, dançar ou passear de veleiro.
Joe Thebaud, o proprietário, explica que não houve danos no estabelecimento. “Aqui temos champagne de até 150 dólares a garrafa”, diz, mostrando uma Veuve Clicquot. “Não se quebrou uma sequer”. As piscinas seguem cheias de água cristalina, duas ou três pessoas se banham, outras comem em frente ao mar. “Desde 12 de janeiro temos poucos hóspedes”, segue com um semblante triste. “Se as coisas não melhorarem, nos restará fechar”.
Data de Publicação: 12/02/2010
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