Verdade e Política: fato versus opinião versus mentira no plano do domínio público (Parte I)
LEILA BRITO
O tema dessas reflexões é um lugar-comum. Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a veridicidade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. Por que é assim? E o que significa, por um lado, para a natureza e dignidade do domínio político, e, por outro lado, para a natureza e dignidade da verdade e da veracidade? É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência mesma do poder o ser embusteiro? E que espécie de realidade a verdade possui, se é impotente no domínio público, que, mais que qualquer outra esfera da vida humana, assegura a realidade da existência a homens sujeitos a nascimento e morte – isto é, a seres que sabem ter surgido do não-ser e que, após curto intervalo, novamente nele desaparecerão? E, por fim, não será a verdade impotente tão desprezível como o poder que não dá atenção à verdade? Essas questão são incômodas, porém emergem necessariamente de nossas convicções correntes sobre o assunto (ARENDT, 1972, p. 283).
Para Arendt, o momento traumático que originou um “abismo” entre filosofia e política coincide com o julgamento e a condenação de Sócrates pela polis ateniense, sendo, portanto, um momento “decisivo” na história do pensamento político ocidental. Assim, o fracasso de Sócrates em convencer o tribunal ateniense quanto à sua inocência e utilidade para a cidade está diretamente vinculado à constituição da tradição do pensamento político, na reflexão de Platão (DUARTE, 2000, p. 162). Em 1954, numa conferência intitulada “Filosofia e Política”, a filósofa afirmou: o abismo entre filosofia e política abriu-se historicamente com o julgamento e a condenação de Sócrates [...]. Nossa tradição do pensamento político teve início quando a morte de Sócrates fez Platão desencantar-se com a vida da “polis” e, ao mesmo tempo, duvidar de certos princípios fundamentais dos ensinamentos socráticos. (ARENDT, 1954 apud DUARTE, 2000, p. 162).
Em Karl Marx e a Tradição, de 1953, Arendt expõe o cerne do problema: [...] a filosofia política começou com a degradação da política e com o desprezo evidente dos filósofos por tudo que se relacionasse manifestamente à pluralidade dos homens e à sua vida comum (ARENDT, 1953). Tal degradação tem início em Platão, no seu desespero em relação à vida na polis, e as expressões teóricas desse desespero mantiveram-se dotadas de autoridade por muitos séculos. A ação perdeu a dignidade do pensamento e do discurso humanos (a verdade, segundo Platão, adere mais à lexis do que à práxis, ou seja, mais ao discurso do que à ação); o discurso, na medida em que, primariamente, era um falar com os outros, perdeu sua dignidade para uma pura contemplação sem palavras, sendo degradado em falatório irresponsável e arbitrário que expressa opiniões (doxa); finalmente, o pensamento separado do discurso e da ação, tornou-se um modo de vida ineficiente e não prático no bios theorétikos. A filosofia política nunca se recobraria deste choque (ARENDT, 1953 apud DUARTE, 2000, p. 164).
Desta forma, o conflito entre verdade e política surgiu historicamente de dois modos de vida diametralmente opostos – a vida do filósofo, tal como interpretada primeiramente por Parmênides e, depois, por Platão, e o modo de vida do cidadão. Às inconstantes opiniões do cidadão sobre os assuntos humanos, por si próprios em constante fluxo, contrapunha o filósofo a verdade acerca daquelas coisas que, por sua mesma natureza, eram eternas, e das quais, portanto, se podiam derivar princípios que estabilizassem os assuntos humanos (ARENDT, 1972, p. 289).
Por conseguinte, o oposto da verdade era a mera opinião, que era equacionada com a ilusão; e foi esse degradamento da opinião o que conferiu ao conflito sua pungência política; pois é a opinião, e não a verdade, que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder. “Todo governo assenta-se na opinião”, disse James Madison, e nem mesmo o mais autocrático tirano ou governante pode alçar-se algum dia ao poder, e muito menos conservá-lo, sem o apoio daqueles que têm o mesmo modo de pensar. Ao mesmo tempo, toda pretensão, na esfera dos assuntos humanos, a uma verdade absoluta, cuja validade não requeira apoio do lado da opinião, atinge na raiz mesma toda a política e todos os governos (ARENDT, 1972, p. 289-290).
Seria possível dizer, então, que, no mundo em que vivemos, os derradeiros vestígios do antigo antagonismo entre a verdade do filósofo e as opiniões “da praça do mercado” desapareceram; que “nem a verdade da religião revelada, a qual os pensadores políticos do século XVII ainda tratavam como grande malefício, nem a verdade do filósofo, desvelado ao homem na solidão, interfere mais nos assuntos do mundo”. Naturalmente, pois, “pensando em termos de tradição, é possível que nos sintamos autorizados a concluir, desse estado de coisas, que o antigo conflito finalmente foi resolvido, e sobretudo, que sua causa original, o embate da verdade racional com a opinião, desapareceu” (ARENDT, 1972, p. 292-293).
Estranhamente, porém, não é isso que acontece, pois o embate da verdade fatual com a política que hoje testemunhamos em tão larga escala tem ‒ pelo menos quanto a alguns aspectos ‒ feições bastante análogas. Ao passo que, provavelmente, nenhuma outra época tolerou tantas opiniões diversas sobre assuntos religiosos e filosóficos; a verdade fatual, se porventura opõe-se ao interesse de um determinado grupo, é acolhida hoje em dia com maior hostilidade que nunca (ARENDT, 1972, p. 293).
A filósofa fala dos segredos de Estado, que sempre existiram, e da necessidade de todo governo em classificar determinadas informações, subtraindo-as do conhecimento público, e ainda, de considerar e tratar como traidor aquele que revela segredos autênticos. Porém, deixa claro que os fatos em questão são aqueles conhecidos publicamente, muito embora o mesmo público que os conheça possa, com êxito e, amiúde, transformar em tabu sua discussão pública espontaneamente, tratando-os como se fossem justamente aquilo que não são, sou seja, segredos de Estado. Fenômeno curioso, no entendimento da filósofa, é que a asserção de tais fatos se mostre tão perigosa, como por exemplo, dentre muitos outros, a pregação do ateísmo ou alguma outra heresia em épocas passadas (ARENDT, 1972, p. 293).
Por outro lado, o que parece ainda mais perturbador é que, na medida em que as verdades fatuais inoportunas são toleradas nos países livres, amiúde elas são, de modo consciente e inconsciente, transformadas em opiniões. E visto que tais verdades fatuais se relacionam com problemas de imediata relevância política, o que se acha em jogo é essa mesma realidade comum e fatual, e isso é, com efeito, um problema político de primeiro plano. E com base no fato de que a verdade fatual parece sofrer, com frequência, destino similar à verdade filosófica, quando exposta publicamente para ser contraditada não por mentiras e falsidades deliberadas mas pela opinião, a filósofa reabre a antiga e aparentemente obsoleta questão da verdade versus opinião (ARENDT, 1972, p. 293-294). E neste campo, segundo Duarte (2000):
Para Arendt, não é mais possível fechar a lacuna aberta entre filosofia e política, e o máximo que o filósofo e o teórico da política podem fazer, se de fato querem superar a tradicional recusa ou hostilidade filosófica em relação à política, é levar em consideração a existência desse abismo e refletir a partir dessas duas “perspectivas” ou “modos de existência” distintos, questionando a sua hierarquia tradicional, a fim de encontrar os pontos de menor distanciamento entre pensamento e ação. [...] Arendt tentou escapar ao conflito ordinário entre política e filosofia estabelecendo um contraste entre “perspectivas” e “modos de existência” distintos, porém, complementares, tais como: as faculdades do pensamento e do juízo; o ponto de vista do ator político engajado e do pensador da política; os registros da verdade e da opinião; da ‘práxis’ e da ‘poiesis’, da ‘phronesis’ e da ‘techne’ etc. (DUARTE, 2000, p. 173)
Data de Publicação: 22-09-2010
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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