Verdade e Política: fato versus opinião versus mentira no plano do domínio público (Parte II)
LEILA BRITO
No entendimento de Duarte (2000, 175), a revisão arendtiana da distinção tradicional entre verdade e política não implica aceitar nem um suposto caráter inquestionável da verdade nem o caráter irracional ou não-argumentativo da opinião. Os modos de pensamento e de comunicação que tratam com a verdade, “quando vistos da perspectiva da política”, são necessariamente tirânicos; eles não levam em conta as opiniões das demais pessoas, e tomá-las em consideração é característico de todo pensamento estritamente político. De uma perspectiva política, a opinião não é simplesmente um modo de expressão marcado por seu grau intermediário entre o conhecimento verdadeiro e o erro ou ignorância, como afirmou Platão. [...] A opinião [...] deve ser vista [...] como a expressão de um “ponto de vista” ou “perspectiva” alargados, a partir dos quais os eventos particulares do mundo tornam-se significativos e podem ser objeto de uma discussão, de um acordo provisório ou do conflito político (DUARTE, 2000, p. 177).
Neste sentido, Arendt explica que o apagamento da linha divisória entre verdade fatual e opinião é uma das inúmeras formas que o mentir pode assumir, sendo porém, todas elas, “formas de ação”. O mentiroso é um homem de ação, ao passo que o que fala a verdade, quer ele diga a verdade fatual ou racional, notoriamente não o é. Se o que fala a verdade fatual quiser desempenhar um papel político e, portanto, persuasivo, o mais das vezes terá que entrar em digressões consideráveis para explicar por que sua verdade particular atende aos melhores interesses do grupo. O mentiroso, ao contrário, não carece de uma acomodação equívoca semelhante para aparecer no palco político; ele tem a grande vantagem de estar sempre, por assim dizer, em meio a ele. Ele é um ator por natureza; ele diz o que não é por desejar que as coisas sejam diferentes daquilo que são – isto é, ele quer transformar o mundo. Ele tira partido da inegável afinidade de nossa capacidade de ação, de transformar a realidade, com a misteriosa faculdade que nos capacita a dizer “O sol brilha” quando chove a cântaros (ARENDT, 1972, p. 309-310).
Por fim, o que é mais perturbador, se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um rearranjo completo de toda a trama fatual, a criação de outra realidade, por assim dizer, na qual elas se encaixem sem remendos, falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se encaixavam em seu próprio contexto original, o que impede essas novas estórias, imagens e pseudofatos de se tornarem um substituto adequado para a realidade e fatualidade? [...] Um anedota medieval mostra o quanto pode ser difícil mentir para os outros sem mentir a si próprio. [...] Somente o auto-engano pode criar uma aura de veracidade, e em um debate a respeito de fatos, o único fator persuasivo que ocasionalmente tem possibilidade de prevalecer contra o prazer, o medo e o lucro é a aparência pessoal (ARENDT, 1972, p. 313 e 314).
Sob o sistema atual de comunicação mundial, cobrindo um vasto número de nações independentes, não existe em parte alguma uma potência próxima de ser grande o bastante para tornar sua imagem “irrefutável”. As imagens têm, pois, uma probabilidade de vida relativamente curta; é de crer que sejam desacreditadas não apenas quando a fraude for derrubada e a realidade reaparecer em público, mas antes mesmo que isso aconteça, pois constantemente fragmentos dos fatos perturbam e desengrenam a guerra de propaganda entre imagens conflitantes. [...] o resultado de uma substituição coerente e total da verdade dos fatos por mentiras não é passarem estas a ser aceitas como verdade, e a verdade ser difamada como mentira, porém, um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real – incluindo-se entre os meios mentais para esse fim, a categoria de oposição entre verdade e falsidade. [...] Como todas as coisas que ocorreram efetivamente no âmbito dos assuntos humanos poderiam ter sido igualmente de outro modo, as possibilidades da mentira são ilimitadas, e é isso a causa de sua derrocada (ARENDT, 1972, p. 316, 317 e 318).
No ensaio Verdade e Política, Arendt discute não apenas os dilemas políticos implicados na tradicional subsunção da opinião política a critérios extrapolíticos para a aferição de sua verdade, pois analisa, também, as desastrosas implicações políticas da redução da “verdade factual” à “opinião” e as consequências de sua destruição pela “mentira” política. Considera-se, portanto, o dano que o poder político é capaz de infligir à verdade acerca dos fatos políticos de uma dada comunidade, os quais podem ser apagados: (1) por meio da reescritura totalitária da história; (2) da disseminação organizada da mentira através da mídia; (3) ou por meio de sua transformação em meras opiniões, com as quais se pode consentir ou não (DUARTE, 2000, p. 185).
Não se trata de afirmar que a mentira e a manipulação constituam a própria essência do discurso político, mas sim de reconhecer a impossibilidade de extirpá-las desse domínio, extingui-lo. O que é preciso impedir é que a mentira e a manipulação possam converter-se nos elementos centrais do discurso político, de sorte que a luz do espaço público deixe de revelar novas perspectivas do mundo e passe a escondê-las e destrui-las. [...] O problema da mentira na política torna-se grave e urgente, quando ela deixa de ser tópica a passa a abranger todo um contexto em que os fatos contingentes tornam-se significativos, bem como quando ela passa a redefinir os contornos do presente e do passado por meio da reescritura da história. Nessas circunstâncias, a mentira [...] é a arte de destruir toda evidência que a contradiga, destruindo, assim, o próprio tecido do espaço público ao apagar completamente as fronteiras entre fato e ficção (DUARTE, 2000, p. 185-186).
É nesse sentido que Arendt faz distinção entre os registros da verdade fatual e da opinião, buscando alternativas para se proteger o espaço público da mentira e da manipulação que podem estar contindas no fluxo das opiniões. A possibilidade da preservação da integridade do espaço público em relação à mentira e à manipulação depende da existência de instituições diretamente ocupadas com a reconstituição fidedigna dos fatos gerados pelo espaço público. Para a filósofa, é essencial que os fatos não sejam tratados como opiniões, que eles estejam “além de acordo e consentimento”, para serem aquilo sobre o que incide o debate e a troca de opiniões, de sorte que estas não sejam um meio através do qual os fatos são estabelecidos. Desta forma, segundo Arendt (1972), “a liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação factual seja garantida e os próprios fatos não sejam questionados” (DUARTE, 2000, 186).
Concluindo, a filósofa assevera: A verdade, posto que impotente e sempre perdedora em um choque frontal com o poder, possui uma força que lhe é própria: o que quer que possam idear aqueles que detêm o poder, eles são incapazes de descobrir ou inventar um sustituto para ela. A persuasão e a violência podem destruir a verdade, não substituí-la. [...] Considerar a política da perspectiva da verdade, como fiz aqui, significa situar-se em uma posição exterior ao âmbito político. Essa posição é a daquele que fala a verdade, e perde sua posição – e com ela a validade daquilo que tem a dizer – se tenta interferir diretamente nos assuntos humanos e falar a linguagem da persuação e da violência. [...] É inteiramente natural que nos tornemos cônscios da natureza não-política e mesmo, em potencial, anti-política da verdade – “Fiat veritas, et pereat mundus” – apenas na ocorrência de conflito [...].
A marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal, e sim a falsidade deliberada, a mentira [...]. Onde todos mentem acerca de tudo que é importante, aquele que conta a verdade começou a agir; quer o saiba ou não, ele se comprometeu também com os negócios políticos, pois, na improvável eventualidade de que sobreviva, terá dado um primeiro passo para a transformação do mundo [...]. Conceitualmente, podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar; metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós (ARENDT, 1972, p. 308, 310-311 e 325).
Referências:
ARENDT, Hannah. Karl Marx and the tradition of western political thought: the modern challenge to tradition. Social Research, v. 69, n. 2 (2002c), p. 273-319, 1953.
ARENDT, Hannah. Verdade e política [1964/1967]. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 283-325. Tradução revisada pela Profª Drª Teresa Calvet de Magalhães.
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Data de Publicação: 22-09-2010
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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